No dia 11 de setembro de 2019, aniversário do golpe militar chileno, por volta de uma da tarde, mais de 500 estudantes de pós-graduação se reuniram no primeiro andar do prédio ocupado pelo movimento estudantil, o Centro de Convivência da UFSC. A reunião aconteceu por convocação da Associação de Pós-Graduandos da UFSC, APG/UFSC, enquanto Assembleia Geral, para deliberar sobre a greve estudantil da categoria de pós-graduação. Essa foi a maior assembleia estudantil de pós-graduação de que temos registro e contou com representantes de dezenas de programas de pós-graduação da Universidade.
O acúmulo para a discussão sobre greve chega nesta data no correr de um ano intenso de ataques à educação. No início do mês de maio, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por meio do Ofício Circular nº 1/2019-GAB/PR, informou o recolhimento de bolsas e taxas escolares não utilizadas no mês de abril, impossibilitando que as bolsas que estavam disponíveis fossem repassadas a novos bolsistas. Os programas afetados foram: Programa de Demanda Social (DS); Programa de Excelência Acadêmica (PROEX); Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior (PROSUC); Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUP); e Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES).; notícia que chegou na sequência do anúncio de um bloqueio de mais de R$ 6 bilhões em verbas destinadas para a educação, realizado contra o orçamento mais baixo destinado à área em toda a década. O que ocasionou um corte de 22% da verba da CAPES, principal agência pública de fomento à pesquisa e responsável pela implementação da maioria das bolsas de estudo no país; um corte de 30% das verbas de custeio das Instituições Federais de Ensino (IFES); além de absurdos cortes impostos ao CNPq, segunda agência pública central para o apoio à pesquisa no país, que em 2018 já apontava para o iminente colapso financeiro por falta de repasses. Esse cenário confrontou a comunidade universitária nacional com um quadro de risco grave de paralisação das políticas públicas do Governo Federal para a educação. Com ameaça do comprometimento da subsistência e trabalho de dezenas de milhares de pesquisadoras e pesquisadores em todo o Brasil, além dos prejuízos ocasionados para outros setores da educação. Na UFSC, a Administração Central anunciou no mesmo período a impossibilidade de seguir o funcionamento da Universidade a partir do mês de agosto.
Essa situação se agravou ainda mais nos meses seguintes. Diante de um bloqueio que significou para a UFSC o corte de mais de R$ 43 milhões na verba discricionária, medidas de austeridade passaram a ser tomadas pela Administração Central, entre elas: demissão de pelos menos 95 trabalhadores terceirizados, cujos serviços cuidavam da limpeza, vigilância e outras funções essenciais para o funcionamento da instituição. O resultado foi sentido de pronto, entre outras coisas, na precarização imediata das condições de trabalho dos trabalhadores remanescentes nas funções, diminuição da salubridade dos campi e vigilância com sérios sinais de risco para a comunidade em função de baixo contingente. A resposta do Governo Federal veio na forma de um projeto para a educação, apresentado em uma minuta proposta pelo MEC, que seria reformulada nos meses seguintes, para ser apresentada como projeto de lei no Congresso Nacional, com o nome FUTURE-SE. O projeto consiste em um plano privatista, apresentado em tom de bravata pelo provocador que passou a servir no cargo de Ministro da Educação, superando a incompetência de seu antecessor. Os pontos problemáticos do projeto são muitos, nesta carta citamos apenas alguns, como: gestão das IFES por meio de Organizações Sociais – OS; descaracterização do regime de dedicação exclusiva das IFES; criação de um fundo patrimonial para gestão de patrimônio e ativos; além, obviamente, de nenhuma menção no texto sobre permanência estudantil ou sobre os grupos mais afetados pela realidade universitária de precarização atual, a saber, mulheres, negros, indígenas, quilombolas, LGBTQIs e pessoas com deficiência; tampouco tivemos menção sobre a participação democrática nas esferas deliberativas das IFES, seja com relação a estudantes e TAEs ou à comunidade externa.
Com a grave situação em crescente, observamos um massivo corte de bolsas no interlúdio entre o primeiro e o segundo semestre e a manutenção dos cortes orçamentários. No cenário nacional foram mais de 11 mil bolsas de estudos cortadas, bem como a impossibilidade de cadastramento de novos bolsistas ou renovação de bolsas cujos pesquisadores possuem pesquisa em andamento. Na UFSC, de acordo com levantamento feito pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PROPG), foram mais de 240 bolsas de estudos perdidas. Isso em paralelo com a manutenção do corte orçamentário levou a Administração Central, no mês de agosto, a propor uma nova rodada de cortes e medidas de austeridade, dentre elas a diminuição drástica da capacidade de funcionamento do Restaurante Universitário (RU), que deixaria cerca de 10 mil usuários diários sem alimentação.
O conjunto de problemas e das dificuldades em seguir no clima de normalidade imposto pela opressão disciplinar do Governo, que encontrou ressonância em setores da Universidade, levou a um levante estudantil, de todas as categorias. O resultado foi uma assembleia comunitária, chamada pela reitoria no auditório Garapuvu, do Centro de Eventos, o maior da UFSC, que não foi suficiente para conter as milhares de pessoas que compareceram, mais de 4 mil pessoas, na maior assembleia já realizada na UFSC em sua história. Na ocasião, vários setores, entre eles grupos raramente ouvidos nos espaços públicos de decisão, puderam ter voz e, para as próximas semanas, uma sessão extraordinária do Conselho Universitário (CUn) foi chamada para debater como pauta única o posicionamento da UFSC com relação ao FUTURE-SE. Chegada essa reunião, o projeto do governo foi rejeitado e o movimento estudantil passou a construir uma pauta de greve da categoria.
A greve na UFSC não surge como algo espontâneo. Ela é fruto da mais profunda insatisfação e repúdio contra as ações promovidas pelo governo Bolsonaro. Sua deflagração é resultado de um amplo contexto de debates e discussões políticas sobre a Universidade que vêm sendo realizados desde o primeiro semestre. Durante todo o ano a comunidade estudantil da UFSC tem ocupado as ruas para denunciar os abusos do governo, em diversos atos e atividades que reuniram dezenas de milhares de pessoas. A pós-graduação, em especial, esteve presente em todos os momentos e em todos os espaços de mobilização. Inclusive contra o projeto de Reforma da Previdência apresentado pelo governo, que na esteira da Reforma Trabalhista e da Emenda Constitucional 95, representa a agenda perversa de retirada de direitos em implantação no Brasil. Presenciamos o surgimento de uma enorme corrente de solidariedade e amizade entre discentes dos mais diferentes programas, para agir pelo objetivo comum de melhores condições de trabalho e de defesa da educação pública e gratuita.
Neste cenário, é impraticável não fazer frente junto a um recorte racial da crise. Estudantes negras e negros na esteira do racismo estrutural ancestral erguido em nossa sociedade precisam ter sua pauta debatida e levada para os espaços públicos de discussão. São incontáveis os casos de violência física, simbólica e de invisibilização das pautas anti-racistas e anti-machistas. Trata-se de uma realidade em que o desmonte e sucateamento do ensino não é algo novo, mas sim o que está historicamente estruturado para um povo. Às populações negras, quando acessam as universidades públicas, é reservado o pior lugar, desde as instalações precárias, a falta de acesso a moradia, a indisponibilidade de bolsas, alimentação e até a recusa de professores à inserção em grupos de estudos, pesquisas ou na contemplação de epistemologias afros. É imprescindível o reconhecimento de que vivemos em uma democracia seletiva, racializada e que pouco atende as necessidades das populações negras. O resultado é que temos o formato da universidade pública pensada para atender os interesses das populações brancas. Os povos negros, como também os povos indígenas e quilombolas, estão em crise há séculos, sofrendo opressões e perdas de direitos desde o momento das invasões do continente africano e das américas. O desmonte das IFES e a proposta de privatização, simplificada no FUTURE-SE, são manobras de um governo que já vem atacando os diversos direitos conquistados por intensas batalhas neste país, e que têm piorado desde o governo Temer com a Emenda Constitucional 95/2016 e diversos golpes institucionais em curso. Neste sentido, é urgente a necessidade de incorporação destas pautas pelo Movimento Estudantil e pela Administração Central da UFSC, de modo que as especificidades das estudantes negras e negros sejam ouvidas e que tenhamos um debate sobre a reestruturação da universidade, para o fim de um cenário hegemonicamente branco, no qual tenhamos de fato uma universidade de e para todos.
O que aponta para a necessidade também de um recorte de gênero. As mulheres, em especial as mulheres negras, mulheres pobres, mulheres indígenas e mulheres mães, sofrem com o modus operandi de uma universidade feita para homens e para a elite. Em que, materialmente, faltam creches, espaços de escuta, bolsas com recortes específicos para essas categorias e uma perspectiva de administração e pedagogia universitárias que considere as diferenças em que nos encontramos. E, em que, subjetivamente, a educação que nos deparamos ainda é majoritariamente aquela que privilegia a contribuição e participação masculina e branca nos espaços de discussão, sem questionar ou incentivar a construção de ferramentas de transformação dessa realidade. Para isso, ressaltamos, será essencial que as professoras e os professores e as gestoras e os gestores disponham-se a adaptar a universidade a essas demandas, tanto para aquelas mulheres que já estão na universidade, quanto para aquelas que não chegam ou não conseguem manter-se em nossa instituição pelas dificuldades encontradas. Ponto que nos leva a pensar a situação de vulnerabilidade das populações LGBTQIs, que já passam por todo tipo de violência desde o seio familiar até as ruas de nossas cidades, cujo sangue marginalizado pode ser encontrado por todos os lugares do nosso país. O preconceito e a desinformação, armas utilizadas em grande escala por este governo, são tradicionalmente utilizados para matar e invisibilizar as populações LGBTQIs, cujo acesso a espaços heteronormativos, como a universidade, dá-se pelas marcas da exceção e do preconceito estruturado em nosso tecido social. Todas as formas de LGBTQIfobia devem ser repudiadas e combatidas pelo Movimento Estudantil e pela Administração Central da UFSC e a inclusão da pauta de gênero no âmago do debate público precisa ser feita de maneira urgente. É passado o tempo de aceitarmos caladas o extermínio de formas de vidas divergentes do padrão branco, patriarcal, heteronormativo, cristão e ocidental.
Por fim, temos a necessidade de enfrentar um debate que contemple um recorte de classe. Para além das especificidades de cada grupo social que compõe a pós-graduação, que apontam para uma diversidade tão grande quanto às variações socioeconômicas que atravessam nossa sociedade, bem como perpassam as questões de raça e gênero citadas anteriormente, temos a pós-graduação como classe trabalhadora. Já ultrapassamos a linha do objetivo de conseguir uma formação de ensino superior, porém muitas vezes não nos encontramos enquadrados no mercado de trabalho tradicional. O que torna inegável nossa condição de mão de obra científica deste país, que nos caso das IFES responde por mais de 90% da produção nacional, que recebe pagamento, possui chefia, cobranças e perspectivas de retaliações legalizadas pelo Estado para o caso de não nos adequarmos aos critérios de avaliação estabelecidos pela burocracia e pelo mercado. Somos classe trabalhadora desorganizada e é chegado o tempo de nos unirmos e pautarmos nossos direitos historicamente negados. É inaceitável que estejamos com um contingente enorme de pesquisadoras e pesquisadores sem receber pagamento, também chamado bolsa de estudos, por seu trabalho. É um escândalo que as bolsas de estudo estejam há cerca de seis anos sem nenhum reajuste, por qualquer índice que seja; que nossas condições de trabalho, dentro ou fora de laboratórios, estejam precarizadas; que as políticas de permanência estejam completamente defasadas, sem um acompanhamento efetivo que seja ao menos no caso da saúde mental, que tira a vida e as condições de estabilidade de um incontável número de pesquisadoras.
Diante desse quadro desolador, nossa esperança é a luta. Diante da covardia de um governo, que no revés de cumprir sua função juramentada diante da constituição, para a construção de uma democracia efetiva, nossos recursos são a rebelião e a radicalização. Por estas razões, acordamos em decisão soberana, tirada pela Assembleia Geral da Pós-Graduação UFSC, pela DEFLAGRAÇÃO IMEDIATA DE GREVE NA PÓS-GRADUAÇÃO/UFSC. Os pontos de reivindicação do nosso movimento são os que seguem:
- Restituição do orçamento deste ano cortado pelo governo;
- Revisão das propostas de legislação orçamentária para o exercício de 2020, no que diz respeito à educação, para retorno mínimo ao patamar de 2014;
- Arquivamento do FUTURE-SE;
- Reajuste retroativo das bolsas de mestrado e doutorado, defasadas em 6 anos;
- Aumento da oferta de bolsas de mestrado e doutorado, o comprometimento com sua manutenção, isto é, das existentes e das que foram cortadas, como assegurar a permanência de quem acessa a pós-graduação e apresenta maior vulnerabilidade social ocasionada pela problemática do racismo estrutural; que se estabeleçam políticas urgentes de permanência na pós-graduação pelo governo e pela autonomia universitária, com a disponibilização efetiva de bolsas por recorte racial (negras, indígenas e quilombolas) e questão sócio-econômica garantindo a equidade;
- Arquivamento do projeto de Reforma da Previdência;
- Revogação da Emenda Constitucional do Teto de Gastos (EC95).
Chegou a hora de nos unirmos contra todo retrocesso e em reivindicação dos nossos direitos, conclamamos as demais pós-graduações do Brasil, bem como nossa entidade representativa nacional, a Associação Nacional de Pós-Graduandos, para a construção de uma GREVE NACIONAL DA EDUCAÇÃO. Conclamamos também as demais categorias de trabalhadoras e trabalhadores da educação, professores, TAEs, demais categorias estudantis e profissionais da educação de todo o país, para a construção da GREVE. Conclamamos, finalmente, todas as trabalhadoras e trabalhadores deste país, para reagir à precarização com organização e luta, para que juntos e juntas possamos construir uma GREVE GERAL, capaz de dobrar os interesses políticos nefastos que guiam este governo. À luta!!
Assembleia Geral da Associação de Pós-Graduandos da Universidade Federal de Santa Catarina,
11 de setembro de 2019.