Boletim da APG-UFSC | Ano 2, n. 15

Esta é a primeira edição do Boletim da APG-UFSC depois da Assembleia que deliberou pela continuidade da gestão Assum Preto – e será também a última do ano. A maior novidade é que agora você pode escutar o boletim! A única parte não coberta pelo áudio é a seção Verba volant, scripta manent, que dessa vez apresenta o conto “Visita à reitoria”.

🎧 Ouça o boletim 🎧

👀 Aconteceu 👀

🎯 Fizemos 🎯

🔥 Que tal fazer 🔥

✒️ Verba volant, scripta manent ✒️

Visita à reitoria

Já era o sétimo dia seguido que a via passeando por ali, com aquele cachorrinho. Só não chamava a polícia porque era uma senhorinha, já: que mal ia fazer? Lembrava um pouco sua falecida vó. Só que negra, e menos esforçada por ser simpática.

Ela podia ser uma visitante, ou uma nova empregada. É isso, concluíra ele: devia ser uma senhorinha contratada para, entre outras coisas, passear com o cachorrinho.

O problema é que ele nunca tinha visto aquele cão no condomínio.

Até perguntou pra alguns, discretamente. Pra não gerar outro daqueles mal entendidos em que o pessoal do bairro fica paranoico, e…

Sabe de um cachorrinho, assim, assado?

“Não, nunca vi, não. Mas faz um tempo que não falo com ninguém por aqui, também, vai ver é novo de alguém. Tá incomodando, latindo muito, o que foi?”.

Se achassem que ele não pertencia àquele lugar, que não fosse de ninguém, que tinha entrado ali clandestino, seria outro tipo de mal entendido em que a paranoia também podia acabar em morte, então… Melhor não fazer mais alarde.

Que cachorro feio… Senhor. Ali? Naquele condomínio?

Quando ela parou de caminhar, o cão se enroscou em suas pernas. Ela o encarou de volta, e pareceu respirar fundoantes de amarrar o cachorro no poste e atravessar a rua em sua direção.

– Oi moço…

– Pois não?

– Ai, Jesus… – Suspirou ela, colocandoa mão na cintura e mirando o céu, antes de voltar seus olhos cheios de dúvida para ele. – … O senhor por acaso se chama Alberto Leite dos Santos?

– Ahm… Sim.

– E o senhor por acaso seria… O reitor?

– Ah… Sim, sim, da…

Ave Maria cheia de glória cheia de graça… – Esbaforiu-se ela, pondo as mãos nos joelhos. – eu preciso muito falar com o senhor, porque olha…

– Como a senhora me encontrou aqui?

– Não meu filho, não tem tempo pra isso não… – Esquadrinhou os arredores por meio segundo. – O senhor vem sentar aqui comigo, faz favor…

Ela o fez sentar-seno meio-fio, meio desengonçado, e entregou-lhe um maço de papeis dobrados antes que ele pudesse articular um protesto.

– Olha seu reitor, eu fiz uma disciplina aqui, ó – pulou pro segundo papel – que eu fiz tudo certinho, acompanhei as aulas todinhas e ó, aqui no Moodle aqui – na quinta folha, uma captura de tela de um celular – tem todas as, as frequências, todas as minhas participações no fórum, tem todas as tarefas, que eu tava lá sábado de manhã, entende, que tem uma só que eu entreguei no domingo porque o tutor disse que não tinha nada naquela semana, mas isso foi na aula, o senhor veja, não foi por escrito, e eu tô tentando pegar a gravação dessa bendita faz dois meses, ó aqui ó – na sétima folha, uma troca de e-mails – e esse miserável não admite, senhor reitor, mas tudo bem, porque eu fui bem, o senhor entende? Eu podia ficar sem essa nota que tudo bem, mas aí essa pessoa sem mãe, que é uma, que uma pessoa dessa não tem mãe, seu reitor, ele… Encasquetou, aqui, com essa linha aqui da avaliação, o senhor veja – mais umas folhas adiante, uma prova, corrigida – que eu tô tentando mostrar pra quem quiser ouvir que tava aqui, ó, bem lá na apresentação da unidade 2… O senhor entende de microbiologia?

– Ô, ô, minha senhora, eu… Haha! Espere um momento só…

– Não, não dobra de novo, senhor…

– Não, a senhora que se acalme! A senhora que se acalme, que eu… Eu não estou entendendo o que está acontecendo aqui!

– Eu estou dizendo, senhor, o senhor me desculpe, viu, que eu fui muito prejudicada aqui, e a questão é que ninguém me ouve, entende? E eu tô precisando muito desse diploma e…

– A senhora é uma aluna da universidade, é isso?

– P-pois sim, que eu tô-

– Da graduação.

– … Sim, da graduação, que eu já defendi-

– E a senhora veio até aqui, até a minha casa, me questionar sobre uma nota?

– Mas senhor não é uma nota, se o senhor me ouvir, o senhor vai ver que, que aqui, ó…

– Não, não, olha… – Esquivou ele, levantando-se. – A senhora me desculpe, mas eu não posso fazer nada porquenão é assim que funciona, minha senhora!

– Mas o senhor nem me ouviu!

– Mas por que que a senhora não falou com a coordenadora? Quem é a…

– É coordenador, é um tal de Sérgio, mas eu vou dizer pro senhor o seguinte, que é o que eu ouço por aí, que é que esse Sérgio não existe, que é uma inteligência artificial, só um programa que responde as coisas automaticamente, mas isso eu falei pra todo mundo, isso não pode, pelo menos não na universidade pública…

Não, não, de fato, nós não permitimos isso de maneira alguma… – “… Embora eu não possa impedir os professores de contratar um serviço privado desses…”.

– Então tudo bem, mas eu digo pro senhor que é o seguinte, essa disciplina, é uma daquelas que não tem professor, que é por tutoria, e aí já começa o pesadelo, que o senhor sabe que tutor nunca admite que tá errado porque, se eles tiverem que passar pro departamento uma correção de prova, eles sabem que eles ficam marcados e não vão mais ser, é, contratados mais pro ano que vem, então o que aconteceu aqui, ó… – Insistiu ela, reabrindo os documentos nas mãos do reitor. – Ó… É que ele se recusa a passar pro departamento, aí eu fui conversar com o Sérgio, tá aqui nessa aqui, ó… O senhor pode ver que ele não responde coisa com coisa! Parece até central de telefone, se eu perguntar o, o, o… Sei lá, o sabor de sorvete preferido dele, ele vai agradecer o contato e me mandar pra puta que o pariu!

– Ô senhora, pelo amor de Deus, olha: faz uma denúncia, manda uma mensagem pra ouvidoria, que nós vamos investigar…

– Mas eu já mandei, senhor, o senhor acredita, e eles ficam me mandando de um lado pro outro que nem uma barata tonta! E eu tô precisando muito disso aqui porque não é justo que-

E então ela se virou num susto quando percebeu o zumbido de um drone cruzando o céu, perto do horizonte. Agarrou o corpo do reitor, cujo braço foi, por alguns segundos, a única e apertada barreira entre um rosto contraído e uma axila ainda mais, já feita praticamente de manguezal.

– Ai, nossa senhora… – Ofegava ela, separando-se lentamente do reitor quanto mais o barulho se afastava – era só entrega, era só entrega…

Ele, atônito, alternava entre olhar para o drone em fuga e para ela.

Ele precisava mandá-la embora logo.

Antes que alguém os visse conversando e tivesse alguma dúvida sobre o que estava acontecendo.

– A senhora… Como que a senhora entrounesse condomínio?

– Ô, senhor… – Retraiu-se ela, voltando ao meio-fio. – Não tinha mais pra onde ir, o senhor entende?Era minha última chance, o senhor. O senhor é a minha última chance, eu sinto, eu sei. O senhor sabe que… Até hoje eu tenho em casa uma coisa que eu não me desfaço… Uma coisa só! Mas pode ser que eu tenha que dormir em cima pra não jogar fora, mas não jogo… Que é o meu tamborzinho de levar nas costas, assim, que eu usava quando a gente fazia coisa na universidade… Que aquele campus era assim, sabe, tinha… Tinha manifestação, tinha… Aí tinha professor fazendo merda, a gente se falava e no outro dia a gente fazia barulho, entendeu? Não deixava a aula acontecer… Não, senhor… Ha! Tinha um prédio que era todo quebrado e a gente tinha que brigar feito o diabo pra eles consertar um bebedouro que fosse, mas… Era nosso, entende? E a gente tinha… A gente se olhava no olho, a gente… Não precisava… O senhor sabe como que é, o senhor… O senhor viveu isso?

Ele dobrou as folhas de novo, tomando assento ao lado dela.

– É… Não, pra falar a verdade. Não vivi. – Ela não podia realmente imaginar outra resposta; mesmo barbudo e pouco vaidoso, seu rosto era consideravelmente menos enrugado que o dela. – Quando eu entrei, eu… Aqui já ficou sendo o meu escritório, mesmo, eu…

– Humpf… – Riu-se ela. – Eu não sei o que eu achava que eu ia conseguir… Velha tonta… O senhor sabe que… Eu viajei mais de 300 quilômetros pra chegar aqui. Peguei carona três vezes, que na segunda o miserável disse que biologia era coisa do capeta e só faltou me chutar pra fora do carro, que…

– Mas a senhora… A senhora trouxe aquele cachorro de carona?

– Ah, não, ele tava aí na rua, do lado de fora-

– Mas o porteiro deixou a senhora entrar quando a senhora disse que, o quê, q-que…

– Que eu tava passeando ali do lado de fora com o cachorro aqui do… Do 1100, eu acho que foi que eu disse, aí que eu esqueci o cartão pra entrar…

– Mas: não tem nenhum 1100 aqui.

– Ah, isso, isso foi da primeira vez, então, que depois eu chutei outro número… E devo ter acertado!

Ela caiu numa gargalhada ao dizer aquilo.

“Como eu mando essa mulher embora, meu Deus?”.

– Ai, Jesus segura! – Dizia ela, ainda rindo. – Segura minha mão, que…

– Mas como é que deixam entrar assim…

– Ah, meu filho, vocês terceirizam até a mãe e dá nisso, né… Eu esperei só trocarem o infeliz que tava ali antes e aí o cara chegou e não conhecia ninguém, ia dizer como que eu não trabalhava aqui? Que eu tava mentindo? O senhor sabe que eu já fiz universidade, eu sei como lidar com burocrata, que esses coitados devem sofrer de gato e sapato de vocês, então ele sabe, que, se ligasse pra dona aí da casa pra fazer pergunta idiota, capaz de acharem ruim, aí eu só falei isso pra ele, ele deve ter medido aí minha altura, minha idade, pensou que não tinha problema…

– Mas o… A senhora… – Olhou para o maço de papel em suas mãos. – A senhora disse que já esteve na universidade… Na época em que o ensino era presencial?

Ela virou seu pescoço para ele, e num instante ninguém se arriscaria a dizer que aquele rosto um dia já havia se flexionado ao ponto de sorrir.

– A senhora… Faz outro curso agora, todos esses… Anos… Depois…

Prestou mais atenção à primeira das páginasque segurava em suas mãos. Não havia foto dela no sistema. Seu nome, seu nome soava…

Como um nome que ninguém teria recebido na época e no lugar em que ela havia nascido.

E então olhou a data de nascimento na matrícula.

– Tá errada. – Explicou ela, engolindo duro a rouquidão. – A-a data, ela.. Eu já tentei corrigir essa coisa um milhão de vezes, mas esse, esse “Sérgio” que…

– E a senhora se chama Peng? Igual à cantora?

– A-a m-minha mãe tinha uma…

– Não, olha… – Ele colocou sua mão sobre a dela; com a outra, dobrou os papeis de novo. – Está tudo bem, senhora, não… – Soltou o ar que parecia ter segurado desde o começo da conversa. – Não precisa dizer mais nada.

Por baixo dos soluços da senhorinha, um novo zumbido crescia no horizonte.

– Ela não consegue acompanhar, senhor, se… É minha neta, entende, ela se esforçou tanto pra entrar… Chorou tanto, estudou tanto que perdeu todinho o cabelinho que tinha antes do vestibular, e ela… Hoje ela tem três empregos, tem sempre alguma coisa na hora da aula e eu… Eu-eu tentei uma disciplina só que eu sabia fazer, eu sabia que eu conseguia aprender, senhor, pra ela poder… Sabe? – O zumbido ficou mais forte. – Pra tirar um pouco do peso dela, porque eu pensei, olha, se a universidade não tem mais, agora é tudo na tela, é tudo na internet, eu… Eu fico em casa mesmo, né, eu podia fazer isso por ela… Mas se ela não tiver esse diploma, e se for por culpa minha, ainda, senhor, ela…

– Eu vou… Eu entendo, senhora. – Disse ele, baixinho. – Eu mesmo, vou… Eu vou falar com o meu pai.

Ela chacoalhou de leve a cabeça. O zumbido aumentava cada vez mais.

– Seu… Pai?

Sim. Como a senhora vê… Eu entendo perfeitamente.

O drone chegou perto o bastante para fazer vento nos fios de cabelo soltos da senhora.

De acordo com o Artigo 150 do Código Penal”, disse uma empolgada voz feminina a partir da caixa de som do drone armado, “Você está: permanecendo clandestina ou astuciosamente em uma casa alheia ou em suas dependências”.

– A senhora não é a única com três empregos. Ou, digo… Sua neta. – Explicou o reitor. – Meu pai, ele… Me ajuda. Na verdade quem faz quase tudo é ele. Eu aceno pra câmera de vez em quando. Eu sou mais ator que reitor, essa é a verdade.

Por favor, retire-se imediata e calmamente do recinto, ou teremos que aplicar o uso progressivo da força, iniciando em: um, minuto, e, trinta, segundos”.

– Tá bem, eu… Já vou, eu já vou! – Lamuriou-se ela, erguendo-se. – Eu… Espera um pouco aí…

Ele apertou os dedos das mãos, seus ombros duros qual mármore, desejando que o rosto da idosaindicasse apenas a dor de ter se levantado sem ajuda, e não uma vontade de, realmente, sinceramente, “esperar ali” pelo que quer que fosse.

Ele já tinha prometido ajudá-la. O que mais queria?

– Espera só um pouco aí… O senhor “entende” o que eu passo?

– Eu… – “Falta: um, minuto…” – Eu vou verificar o que eu posso fazer, senhora…

Ainda de boca aberta, escolhendo o que dizer, ela se voltou para a casa de três andares onde ele morava.

Isso aqui… – Começou, apontando para ele e então para ela, num zigue-zague que ele gostaria muito que a câmera no drone não capturasse. – Isso aqui não é igual, entendeu?

– Eu entendi, senhora!

Aaaaah, não, eu não acho que entendeu não!

– A senhora precisa ir embora agora…

Faltam: trinta, segundos”.

O senhor tá reclamando de trabalhar, mas não é obrigado não, viu? Que podia estar morando lá onde eu moro que a gente pode não ter uma garagem pra dois carros, mas…

– MINHA SENHORA! – Nas entrelinhas do zumbido das hélices, ouviu o som mecatrônico do cano na base do drone, que ajustava sua mira. -Tem uma ARMA apontada pra sua cabeça e a senhora TEM que ir embora AGORA!

Eu vou, eu vou… – Levou as mãos aos alto de repente, fazendo o drone ganhar alguns centímetros de altitude. – Eu vou… Drone filho da puta…

Ela se virou devagar, cabisbaixa, até dar as costas para o reitor e começar a se arrastar para o portão do condomínio.

Já eram dois os pares de olhos de casas vizinhas por entre cortinas.

– O cachorro, senhora! – Disse ele, sem saber bem o que ainda esperava.

Vá pro diabo! – Berrou ela de volta, já com as mãos abaixadas, sem nem olhar para trás.

Será que fora discreto o suficiente sobre seu pai?

Será que alguém tinha ouvido alguma coisa?

Olhou em volta. A única pessoa que parecia estar em condições de ter ouvido qualquer parte daquela conversa era ela.

E de fato…

Ela ouvira.

Tudo.

Começou a andar em direção à casa, desdobrando a papelada de novo.

Era melhor o pai não estar ocupado.

Peterson Roberto da Silva

Saiba mais sobre a seção de contribuições autorais da comunidade.

Leia a contribuição anterior (Boletim #013).

➕ Participe da gestão ➕

Se você curte nosso programa de gestãovenha somar com a gente: reuniões semanais abertas, divulgadas em nossas redes sociais!

Acompanhe a APG no Facebook, no Twitter ou no Instagram.