No último dia 11 de março, a Câmara de Pós-Graduação da UFSC (CPG) se reuniu com o objetivo de debater uma variedade de pautas, como de costume. Entre elas, uma proposta de Resolução Normativa (RN) sobre o “vínculo com a universidade para atuação […] nos programas de pós-graduação stricto sensu da UFSC” [1]. Tal resolução, que poderia ser um avanço para a classe docente e para a universidade, teve como desfecho uma contribuição para sua precarização através do trabalho voluntário.
Historicamente, professores aposentados, visitantes e mesmo servidores técnico-administrativos deslocados de suas atividades ordinárias vêm cumprindo um papel muito importante para a formação dos Programas de Pós-Graduação (PPGs), compartilhando seus conhecimentos e habilidades de modo a fomentar não só a docência, mas também a pesquisa e a extensão nas universidades. Essa, obviamente, é uma prática sobre a qual não há motivos para objeções generalizadas.
Entretanto, há motivos mais que suficientes para sermos contrários a vínculos que corroboram com a destruição das carreiras públicas, tanto mais em um cenário no qual temos um governo dilacerando o orçamento da educação pública e agindo ativamente contra os direitos do servidor público, bem como uma PEC Emergencial recém-aprovada e uma Reforma Administrativa a caminho, apenas para nos determos aqui nos problemas mais iminentes.
É nesse cenário que a CPG decidiu permitir o credenciamento de “docentes ou pesquisadores que, mediante a formalização de termo de adesão, vierem a prestar serviço voluntário na UFSC, nos termos da legislação vigente” (Art. 2º, inciso V da RN a ser publicada). Em outras palavras, escancarou as portas para a admissão de professores sem salário, sem quaisquer direitos trabalhistas, sob o pretexto de resolver problemas burocráticos nos processos de credenciamentos dos PPGs. Enquanto isso, os números de doutores e mestres desempregados ou atuando fora de sua área de formação seguem aumentando, os concursos públicos tornam-se cada vez mais raros e concorridos [3]. Até mesmo os processos seletivos para professores temporários, com todas suas limitações inerentes, diminuem progressivamente sua capacidade de absorver essa mão-de-obra qualificada.
Durante a discussão da pauta, nos posicionamos pela supressão do inciso V (se necessário, com alteração do restante do texto para assegurar boas práticas de credenciamento). Os contra-argumentos levantados foram tão somente em defesa do voluntariado por professores aposentados ou de caráter legalista, afirmando a compatibilidade da resolução em relação às políticas formais da UFSC e outras instâncias superiores. Sobre os aposentados, já havíamos declarado não termos oposição generalizada. Quanto à legalidade, ora, essas mesmas políticas formais – em que pese todos os seus problemas – permitiriam uma regulamentação local mais restrita, muito mais vantajosa, que assegurasse a permissão de professores voluntários sem qualquer brecha para que esses assumam lugares não preenchidos pela ausência de concursos. Desse modo, entendemos que tais contra-argumentos constituem uma escolha política em prol da liberalização do voluntariado, para além de meras regulamentações burocráticas.
Os processos seletivos para atuação de professores voluntários vêm se tornando bastantes presentes nas instituições públicas de ensino superior. A UFSC caminha para a ampliação dessa prática nefasta, já que permite aos docentes voluntários a ocupação de ampla gama de funções no ensino, pesquisa, extensão e até orientação, chegando ao extremo de permitir aos professores voluntários o credenciamento na condição de docentes permanentes (conforme Regulamento Geral da Pós-Graduação stricto sensu, RN N°95/CUn/2017, Art. 25, inciso II). Nesse sentido, qual será a garantia de que os concursos públicos ocorrerão em quantidade suficiente? Mesmo que não explicitamente, a fim de não ferir a normativa do Programa de Serviços Voluntários da UFSC (RN Nº 67/2015/CUn, Art. 23), a ampliação do voluntariado docente abre alas para a realização de menos concursos – o que vem bastante a calhar com os cortes orçamentários que cada vez mais assombram os salários, bem como com aspectos importantes de reformas administrativas em fase de gestação.
É certo que é impossível termos previsão exata de como os concursos serão afetados especificamente na UFSC, já que a RN a ser publicada poderá ter impactos distintos de acordo com transformações políticas de nível federal, bem como dependerá do quão bem aceitos (e transparentes) serão os distintos tipos de credenciamentos solicitados e praticados. Não obstante, há motivos para ficarmos preocupados, já que o voluntariado vem sendo aproveitado sistematicamente como forma de desmonte do serviço público e dos direitos trabalhistas desse setor, nacional e internacionalmente [6], com precedentes inclusive nas instituições públicas de ensino superior brasileiras. A título de exemplo, podemos citar os casos recentes da UFSCar, UnB, IFTO e IFSP [7], os quais demonstram inclusive o fato de que disciplinas introdutórias e obrigatórias, atividades de orientação e uma série de outras funções básicas vêm sendo ministradas por voluntários.
Ainda que supuséssemos, de modo extremamente otimista, a inexistência de brechas para a ocupação dessas funções básicas por parte de voluntários, o problema não se esgotaria. O trabalho docente não deve ser tratado como filantrópico ou algo similar, afinal, compõe parte do interesse geral da população à qual a universidade deve servir, não podendo se submeter à revelia de motivações particulares que levam indivíduos a assumirem os postos de trabalho do serviço público. Nesse sentido, as atividades voluntárias (exercidas, por exemplo, por aposentados bem-remunerados) deveriam ser todas de caráter meramente complementar.
É importante notar que imensa parte da população brasileira ainda se encontra à margem da educação pública de qualidade, de modo que a mera manutenção dos concursos nos níveis atuais é insuficiente, sendo necessário um incremento substancial para atender a demanda existente (junto, é claro, de uma expansão universitária do setor público de ensino). Além disso, a sobrecarga docente e a defasagem de concursos demonstram demanda de concursos até mesmo para as vagas atualmente institucionalizadas.
Dessa maneira, não há sentido algum em estimular o voluntariado como se todas as funções essenciais já estivessem supridas.
Na condição de pós-graduanda(os), nos preocupamos fortemente com toda essa situação, que coloca os nossos pares e os recém-formados sob risco crônico de serem obrigados a se submeter ao trabalho sem remuneração a fim de adquirir experiência docente, a qual constitui critério de desempate cada vez mais decisivo para a aprovação em concursos públicos.
Pelos motivos expostos neste breve texto, nos manifestamos contrariamente à RN nº 2/2021/CPG e lamentamos a posição tomada por todos os conselheiros não-discentes da Câmara de Pós-Graduação, os quais votaram a favor dessa resolução, em prejuízo da categoria docente e discente, bem como da comunidade acadêmica e extra-acadêmica. Seguiremos vigilantes e atuantes em defesa de nossos direitos e do interesse público da universidade*.
*A escrita desse texto foi imensamente beneficiada por discussões em grupos de pós-graduandos e pós-graduados, nos quais abundam fontes sobre a precarização associada ao trabalho voluntário no ensino superior.
[1] A versão aprovada na CPG, Resolução Normativa Nº 2/2021/CPG, está disponível no Boletim Oficial da UFSC de 22/03/2021.
[2] O ANDES Nacional publicou sínteses sobre esses ataques ao serviço público através da PEC Emergencial e da Reforma Administrativa.
[3] Não precisamos ir muito longe para verificar essa situação. As pesquisadoras Valeska Guimarães, Sandro Soares e Maria Casagrande, a partir de uma amostra de 20 docentes voluntários da UFSC, apontam: “No caso dos professores não aposentados (a minoria), jovens recém-doutores, observamos que a opção advém da espera de abertura de concurso público em suas respectivas áreas de atuação”. Acesse o artigo aqui.
[4] Disponível aqui.
[5] Disponível aqui.
[6] Uma importante pesquisa sobre o tema, comparando os casos e Brasil, Argentina e Chile, foi publicada no artigo das professoras Savana Melo e Suzana Santos.
[7] IFTO, IFSP, UFSCar, UnB.