Posicionamento da APG-UFSC sobre multas para pós-graduandos no caso de atrasos na entrega de teses e dissertações

16/08/2018 08:00

Em abril deste ano a Associação de Pós-Graduandos da Universidade Federal de Santa Catarina (APG-UFSC) disponibilizou um modelo de requerimento para expedição de diploma de Pós-Graduação sem multa. Hoje a Universidade deve adotar a política de expedir o diploma mesmo sem o pagamento da multa, mas isso não extingue a multa em si; sendo assim, o mesmo modelo pode ser usado para solicitar a extinção dessa multa.

Estes requerimentos chegam hoje ao Conselho de Curadores, órgão colegiado que tem o poder de determinar a extinção das multas. Uma vez que o documento que disponibilizamos (como cortesia do doutorando Rodrigo Alessandro Sartoti) argumenta pela ilegalidade da cobrança da multa com base na gratuidade do ensino, a Procuradoria Federal da UFSC (PF-UFSC) foi acionada para emitir um parecer sobre o assunto.

Por meio da Nota 00026/2018/NADM/PFUFSC/PGF/AGU, a PF-UFSC afirma que “a cobrança não afronta a gratuidade do ensino ou o direito à edução [sic], tendo em vista que a natureza da cobrança da multa é sancionatória, estando ampara [sic] em ato administrativo válido, expedido pela Administração Pública”, adicionando que “a multa constitui sanção ao atraso, não taxa” e que “a aplicação da sanção é válida para o aluno que incidir no descumprimento do prazo estipulado, não se trata de cobrança pela oferta do ensino”. Conclui que “não há que se falar em remuneração pela prestação do serviço, e nem aplicação de medida de cunho pedagógico, mas sanção ao descumprimento de obrigação assumida pelo acadêmico em sua relação com a Universidade”.

Com esta resposta, no entanto, a verdadeira natureza do valor a ser pago é meramente escamoteada, na medida em que se apresenta como razoável “sanção ao descumprimento de obrigação” um valor que, embora cobrado seletivamente, está fixado intrinsecamente na relação entre a Universidade e a/o pós-graduanda/o e anualmente colabora com o financiamento da Universidade. Neste sentido, é uma maneira de cobrar pela pós-graduação se esta não pode ocorrer sem que esta situação esteja prevista e se a Universidade (que gerencia os recursos da pós-graduação em questão) está sendo em parte financiada por meio deste valor.

A primeira questão deveria ser ponto pacífico, porquanto óbvio; está sujeito à multa todo/a pós-graduando/a que não consiga entregar para a Biblioteca Universitária a versão final de sua dissertação ou tese no prazo estipulado pela banca em seu processo de defesa, de modo que no momento a potencial cobrança de multa é intrínseca à vaga em programa de pós-graduação ofertada pela Universidade e ocupada pela/o pós-graduanda/o. Já quanto à segunda, ocorre que as multas fazem parte do orçamento anual da universidade, de modo que há, por parte de sua administração, expectativa de rendimentos. Todos os anos, o valor a ser adquirido pela universidade através de multas é estimado, e todos os anos esta universidade utiliza deste valor para suas despesas. Só neste ano corrente, na fl. 0012 do processo 23080.012204/2018-83, intitulado “Abertura de Crédito Orçamentário para o Exercício de 2018”, consta como receita primária da Universidade, no ítem 1990.99.12, “OUTRAS RECEITAS-PRIMARIAS-MULTAS E JUROS”, com o valor de R$ 383.267,00. Deste valor, não se destaca no orçamento quanto é composto por multas a pós-graduados/as – informação que não se pode obter nos últimos cinco relatórios de gestão da Universidade. Porém, repetidamente nos Relatórios de Gestão (o último exemplo sendo o de 2016), encontramos a informação de que, dentre as “medidas para garantir a sustentabilidade financeira dos compromissos relacionados à educação superior”, tem-se “receitas próprias advindas do recolhimento de taxas, multas e aluguéis, entre outras”.

A questão é que esta Universidade se nutre diretamente de dinheiro pago por pós-graduandas/os, mas deseja que isto não seja considerado uma cobrança que avilte a obrigatória gratuidade da pós-graduação stricto sensu. Para exemplificar de que maneira isto é consequente para a relação entre Universidade e pós-graduando, chamo atenção para o parecer expedido pela Pró-reitoria de Pós-Graduação (PROPG) em relação ao processo 23080.005644/2018-84. Neste processo, a requerente solicitava isenção de multa relativa a atraso na entrega do exemplar final de dissertação de mestrado devido ao tratamento psiquiátrico de sua mãe (à qual precisou dispensar acompanhamento e cuidados especiais, segundo parecer profissional). A PROPG reconheceu que não há “previsão normativa explícita de afastamento para tratamento de saúde de familiar após a defesa do trabalho de conclusão”, mas resolveu propor uma espécie de cobrança proporcional que ainda traria centenas de reais aos cofres da universidade. Ora, temos aqui uma administração disposta a, o quanto for possível, ignorar o aspecto humano e solidário da relação entre a Universidade e as pessoas que com ela se relacionam para financiar suas atividades.

Esse incentivo perverso integra uma visão neoliberal segundo a qual ambos educador(a) e educanda/o são indivíduos (ou átomos institucionais) que contraem relação de mútua prestação de serviços, e é isto que é chancelado ao permitir e considerar devida a cobrança. Em que pese a seletividade específica da cobrança, fato importante para o argumento de que não se trata de cobrança indevida, deve-se ponderar o papel da Universidade enquanto instituição educativa e do/a pós-graduando/a como educando/a. A/o pós-graduanda/o não pode ser tratado da mesma maneira que uma empresa que, ao entrar em relação contratual de prestação de serviços ou produtos com a Universidade, pode ser multada se lesá-la ou deixar de cumprir com suas obrigações no transcorrer de suas atividades, que são unicamente voltadas para o lucro. De fato a pós-graduação confere à/ao pós-graduada/o um diploma, mas esta não é a única resultante desse processo, que não é unilateral: parte extremamente significativa do total da produção científica brasileira se dá na pós-graduação, e é executada pelos/as pós-graduandos/as. Como observa Severino (Pós-graduação e pesquisa: o processo de produção e de sistematização do conhecimento. Rev. Diálogo Educ., Curitiba, v. 9, n. 26, p. 13-27, jan./abr. 2009 – p. 15-16), “no âmbito da pós-graduação” a postura e a prática investigavas são imprescindíveis pois “a prática sistematizada da investigação científica encontra aí o seu lugar natural, uma vez que sua atividade específica é a própria pesquisa”, e segundo dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (Retirados do Portal de Observatório do Plano Nacional de Educação (PNE)), pós-graduandas/os estão presentes em 90% das pesquisas realizadas no país. Além disso, de qualquer maneira, não se pode perder de vista o/a pós-graduando/a enquanto pesquisador(a) em formação, cuja dissertação ou tese não é pagamento na transação de obtenção de diploma, mas reflexo de todo seu processo educacional e de crescimento enquanto pesquisador(a). Sendo assim, não só o/a pós-graduando/a tem obrigações para com a universidade, mas a Universidade para com a/o pós-graduando/a. Se o/a pós-graduando/a fracassa no depósito de sua dissertação ou tese em tempo hábil, não teria a universidade como um todo fracassado? Qual é a responsabilidade da Universidade enquanto instituição que quer ser vista como ambiente propício à pesquisa em relação às pesquisas que não se concretizam? Qual a responsabilidade do/a professor(a) orientador(a), ou da/o coordenador(a) de pós-graduação?

Individualizar e culpabilizar unicamente o indivíduo ao final de seu processo de educação só se torna aceitável no quadro do avanço neoliberal supracitado sobre a forma como a Universidade se organiza, mas é injusto, cruel, e portanto absolutamente incoerente com o papel de uma instituição voltada para a educação, posto que são precisamente aqueles que mais precisam de ajuda – visto que não conseguiram dar bom termo a suas jornadas acadêmicas – que a Universidade pune com as multas. Quando da resolução do processo 23080.078194/2016-87, o ex-conselheiro Itamar Aguiar ofereceu em reunião do Conselho de Curadores uma explicação de diversos dos casos mais sérios em termos de dias de atraso (e por conseguinte multa) de entrega de dissertação ou tese, deixando nítido como são raros os casos em que tal individualização punitivista poderia ser sequer razoavelmente cogitada. E, aliás, desde aquele momento, embora em outra gestão, a Associação de Pós-Graduandos da UFSC (APG-UFSC) já alertava “que a questão dos atrasos poderia ter outras discussões pedagógicas, que não apenas multas”.

Me parece incontornável discutir este caso sem alertar para a situação das/os pós-graduandas/os no país. Desde 2016 a mídia brasileira vem discutindo o crescimento do desemprego entre pessoas com qualificação por conta da recessão econômica, o que estaria revertendo um quadro de crescimento anterior (só há dados até 2014 – Ver GALVÃO et al., O quadro recente de emprego dos mestres e doutores titulados no Brasil. Parc. Estrat., Brasília, v. 21, n. 43, p. 147-172, jul./dez. 2016), além dos problemas de saúde mental que os/as estudantes de pós-graduação vêm enfrentando no mundo inteiro, sem exceção para o caso brasileiro; uma recente pesquisa publicada na revista Nature aponta que pós-graduandas/os têm seis vezes mais chance de experimentar depressão e ansiedade do que a população em geral. Ainda segundo Amorim (Pós-graduação em tempos de precarização do trabalho: alongamento da escolaridade e alternativa ao desemprego. Crítica Marxista, n. 35, p. 179-181, 2012 – p. 181), em resenha ao livro “Pós-graduação em tempos de precarização do trabalho”, de Valéria Mattos, que inclusive resultou da dissertação de mestrado da autora, a pós-graduação

não assegura, necessariamente, uma oportunidade de emprego, mas sim tem sido acompanhado por uma sofisticada seleção da força de trabalho qualificada que, além de reproduzir as segregações raciais e de gênero, contrata trabalhadores de nível superior para postos de trabalho com nível inferior.

Ou seja, os/as pós-graduandos/as e pós-graduados/as não estão protegidos/as “da precarização e da falta de empregos” – quanto às/aos pós-graduandas/os, aliás, mesmo aqueles que recebem bolsa de estudos não necessariamente estão em posição confortável, tendo em vista que as bolsas de pós-graduação foram reajustadas pela última vez há 5 anos e que, se tivessem sido reajustadas desde 1995 a partir da inflação, segundo análise de André Coutinho Augustin, mestre em economia pela UFRJ, bolsas de mestrado, por exemplo, deveriam ser de R$ 3.276,74.

Em outras palavras, temos pós-graduandos/as estressados/as, deprimidos/as, ansiosos/as e com pouca perspectiva de futuro profissional e, destes/as, aqueles/as que claramente precisam de mais auxílio para concluir satisfatoriamente seus estudos são então punidos/as no momento em que se veem com menor apoio institucional. Nos casos de fragilidade econômica, que inclusive são bastante difíceis de provar documentalmente ao ponto de tentar algum apelo de excepcionalidade, a dívida provavelmente leva, como foi determinado pelo Conselho de Curadores, à inscrição da/o estudante na dívida ativa da união, o que, segundo informações do Conselho Nacional de Justiça, impossibilita-a/o de “abrir contas e tomar empréstimos na rede bancária”, “utilizar o limite do seu cheque especial”, e “participar de licitações públicas”, para não mencionar a repercussão que tal inscrição pode ocasionar em demais interações entre a/o inscrita/o e outras pessoas físicas e entidades privadas.

Em suma, esta Universidade adota uma postura punitivista, que individualiza um problema sistêmico sobre os/as estudantes que mais necessitam de atenção pedagógica, o que é incentivada a fazer porque esta cobrança ajuda a financiar o próprio funcionamento da universidade, estando inclusive prevista em seu orçamento, de modo que não cabe afirmação de que não se constitui como cobrança relativa ao aspecto pedagógico da instituição – inclusive porque é uma medida que visa atuar sobre um problema pedagógico, isto é, o fracasso institucional da Universidade em produzir, a partir da trajetória acadêmica da/o pós-graduanda/o, a pesquisa que se esperava realizar.

Como último ponto, é preciso ressaltar que a Procuradoria Geral afirma que

o que se quer garantir não é a cobrança, mas o cumprimento do prazo, tendo em vista que as pesquisas realizadas utilizam recursos públicos e devem ser disponibilizadas à comunidade dentro do prazo avençado entre a Universidade e o discente, a fim de se atender ao interesse da coletividade.

Como argumentado acima, o processo de pós-graduação envolve mais que a confecção de uma dissertação ou tese, incluindo aquilo que não é feito (embora tenha valor em si) como meio para a produção deste produto específico – de modo que seria difícil de arguir que a multa deveria ser cobrada como maneira de recuperar alguma espécie de desperdício no investimento de recursos públicos (em que se teria que calcular, inclusive, o quanto os próprios recursos envolvidos na cobrança de tais valores, medida sua eficiência, não seriam ainda mais dispendiosos ao Estado). Não obstante, sustenta-se a argumentação original do requerente quanto à indefensabilidade da medida enquanto solução efetiva para “garantir […] o cumprimento do prazo”, especialmente em um cenário em que o/a pós-graduando/a age como átomo maximizador de lucro desimpedido/a (posto que os casos muito mais realistas de conjunturas que prejudiquem o cumprimento dos prazos não poderão tampouco ser resolvidos com a aplicação da multa, como visto até aqui) – ora, se a indisponibilidade de seu diploma não é suficiente para que tal aluna/o faça os esforços necessários para obtê-lo sem pagar multas ao depositar sua dissertação ou tese na data estipulada, a multa a/o desencoraja progressivamente a realizar o depósito, considerando que a multa só passará a ser cobrada assim que ela/e o fizer. Ademais, isto não poderia sanar o problema relativo ao decrescido valor de ineditismo da dissertação ou tese entregue com atraso. Dito de outra maneira, a multa, além de injusta, indevida e potencialmente ineficiente, não é eficaz – seja por não ter na realidade os efeitos que se propõe a ter, seja porque ela possibilita que a Universidade externalize este problema sem discuti-lo de maneira adequada e sistêmica. Vale ressaltar que a cobrança de multas por atraso na entrega de teses e dissertações não é unanimidade nas universidades brasileiras; a Unicamp, por exemplo, não a implementa.

Sendo assim, a APG-UFSC seguirá firme na defesa dos pós-graduandos e contra a cobrança de multas no caso de atrasos na entrega de teses e dissertações.